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Tarifa Zero: entre a utopia e a possibilidade

Maria Carolina Cassella

Atualizado: 19 de jun. de 2024

Entenda as visões de distintos setores da sociedade sobre a implementação de uma tarifa gratuita para os ônibus


Por Maria Carolina Cassella


Foto: Leon Rodrigues/SECOM/PMSP/Divulgação (O Globo)


A falta de transparência, um marco de poder há décadas no sistema de ônibus, incertezas sobre o financiamento da gratuidade e problemas de infraestrutura são apenas algumas questões apontadas como desafios da implementação de uma política de Tarifa Zero.


No estado do Rio de Janeiro, 10 cidades já vivenciam a realidade de uma política de tarifa gratuita. A cidade do Rio de Janeiro, por outro lado, ainda enfrenta resistências para a inserção dessa política de mobilidade no seu principal meio de transporte: os ônibus.


Seriam cerca de 32 milhões de passageiros mensalmente beneficiados por essa política, predominantemente trabalhadores e estudantes. Hoje, a realidade é uma passagem no valor de R$4,30 para um serviço de baixa qualidade.


Como resposta à ineficiência do setor de transportes, além de obras públicas como o Terminal Gentileza e a Nova Transoeste, a Câmara Municipal trouxe a implementação da política de Tarifa Zero na cidade para debate público em dezembro de 2023, por meio do projeto de Lei 2714/2023.


O tema promete ser um dos principais a serem abordados em 2024, sobretudo, nas propostas apresentadas para as eleições municipais, em que serão escolhidos prefeito e vereadores. No entanto, o setor político, o setor empresarial e especialistas em engenharia de transportes apresentam visões distintas sobre diferentes aspectos para a implementação bem-sucedida do projeto.


FALTA DE TRANSPARÊNCIA DIANTE DE UM MARCO DE PODER


O ex-vereador do Rio de Janeiro - e atual deputado federal - Tarcísio Motta (PSOL) esteve envolvido no debate sobre transporte público na cidade por meio da CPI dos Ônibus, encerrada em Abril de 2018, para a qual formulou um relatório alternativo com recomendações políticas para a melhoria desse sistema.


Para Tarcísio Motta, o principal desafio a ser superado com a instalação da CPI dos Ônibus era a falta de transparência no sistema de ônibus da cidade do Rio de Janeiro, que está, há décadas, sob o poder dos empresários vinculados à Fetranspor. Esses empresários teriam seus interesses muito defendidos em parlamentos, sobretudo na Câmara dos Vereadores, o que contribuía para a baixa qualidade do serviço de ônibus oferecido.


“A CPI dos Ônibus criou uma compreensão da sociedade e do poder público de que era preciso fazer algo mais do que estava sendo feito até aquele momento” - disse o ex-vereador. Esse legado nos aproxima da implementação de uma política de Tarifa Zero.


A criação de uma empresa pública de ônibus (MobiRio), a separação da bilhetagem eletrônica da operação e da licitação exclusiva do sistema e o congelamento da tarifa de ônibus entre os anos de 2017 e 2021 são algumas medidas que foram tomadas nos anos subsequentes à CPI, embora não haja afirmação pelos próprios políticos de que essas medidas foram influenciadas pelos relatórios produzidos


“A CPI também foi importante porque a nossa grande questão era o fato de que ninguém sabia quanto custava o sistema de ônibus do Rio de Janeiro” - disse Tarcísio Motta. As medidas implementadas são um passo para essa transparência no sistema, uma vez que a disponibilidade de informações permite o debate sobre como seria possível financiar uma política pública como a Tarifa Zero.


O deputado também acredita que a perspectiva social da Tarifa Zero é muito importante, afirmando que se deslocar pela cidade é uma necessidade inerente à nossa vida e ao combate à desigualdade.


“A Tarifa Zero tem a capacidade de ampliar o ‘direito à cidade’, de modo que o valor da passagem deixe de ser um obstáculo para que o cidadão se desloque, se sentindo mais livre” - disse Tarcísio Motta. “A Tarifa Zero é um instrumento decisivo para o enfrentamento da desigualdade e a passagem de ônibus aprofunda essa desigualdade. Esse é um elemento imediato no cotidiano das pessoas” - confirmou o ex-vereador.


“É errado que uma necessidade como o transporte fique nas costas do próprio trabalhador. Há toda uma engrenagem a justificar o rumo em direção à Tarifa Zero. Isso não será feito de uma hora para outra. É uma mudança essencial e estrutural na forma como a cidade se organiza hoje” - enfatizou. A Tarifa Zero retira esse custo para o trabalhador e, portanto, parte da desigualdade.


Tarcísio Motta também acredita que é de extrema importância que a população não perca a esperança por um serviço de melhor qualidade e a Tarifa Zero tem um papel fundamental nesse resgate.


“A Tarifa Zero gera empregos, gera liberdade e até segurança” - afirmou Motta. A gente precisa garantir que a população veja que existem outras pessoas enfrentando esses grupos poderosos, dispostos a quebrar esse marco de poder. O povo do Rio de Janeiro precisa acreditar que essa mudança é viável” - endossou o deputado federal.


INCERTEZAS SOBRE O FINANCIAMENTO DA GRATUIDADE


Paulo Valente, diretor do Rio Ônibus - Sindicato das Empresas de Ônibus do Rio de Janeiro - afirmou que o setor empresarial enxerga a Tarifa Zero com bons olhos. “É uma relação, de fato, de ganha-ganha, só que existe uma conta a ser paga”. “O primeiro passo que tem que se dar é a vontade política de se implementar, mas ela sozinha não paga a conta” - disse.


Valente alegou que, historicamente, a quantidade de passageiros pagantes vem diminuindo e os custos operacionais aumentando, cenário esse que teria se intensificado ainda mais após a pandemia. Os custos, segundo ele, são inviáveis para serem arcados somente com o preço das passagens de ônibus pela população.


Em maio de 2022, após uma reunião entre o Ministério Público Estadual, a Prefeitura do Rio de Janeiro, concessionárias de ônibus e associações de passageiros, o governo assinou um acordo que proporcionou início ao pagamento de subsídios ao sistema de ônibus da cidade.


“No Rio de Janeiro, custou a ter esse entendimento (do subsídio). Mas veio a pandemia, os ônibus tiveram que continuar rodando sem carregar praticamente ninguém, então, quem ia pagar o diesel, os salários? Ficou inviável e o sistema entrou em colapso, com várias empresas se fechando e outras em recuperação judicial.” - relata o diretor da Rio Ônibus


Atualmente, o subsídio corresponde de 35% a 40% do custeio do sistema de ônibus do Rio de Janeiro e evita o repasse do custo para o usuário, melhorando o serviço. Para Paulo Valente, “a Tarifa Zero nada mais é do que levar a situação do subsídio à uma situação extrema, em que o poder concedente paga 100% da tarifa que tem que ser paga pelo usuário”.


No entanto, o diretor da Rio Ônibus destaca que, do ponto de vista social, a Tarifa Zero é excelente, mas é preciso ter responsabilidade ao implementá-la. “É preciso se estudar de onde virá o dinheiro para pagar por esse sistema e verificar qual o impacto disso na mobilidade urbana porque hoje, se você der gratuidade só nos ônibus, a demanda vai aumentar e quem anda de trem, metrô ou VLT vai querer andar de ônibus” - alegou.


Com a implementação da Tarifa Zero, uma nova forma de custeio tem que ser vista, mas a questão principal é pensar em pontos alternativos de recursos para pagar a passagem porque somente com o imposto pago hoje em dia, não é possível fechar a conta. “Você tem que começar a fazer uma bolsa de itens de arrecadação que te deem o valor necessário para custear esse novo modelo de Tarifa Zero” - endossou Valente.


Quando perguntado sobre a não inserção do Rio de Janeiro nesse projeto e sobre os desafios de integrar a cidade com outras regiões, Paulo Valente destaca a ausência de uma autoridade: “Tinha que existir uma agência metropolitana que tratasse a questão do transporte e a regulasse para além dos governos, pensando na região metropolitana como um todo”.


A mobilidade urbana na cidade do Rio de Janeiro é, hoje em dia, uma das razões para o seu esvaziamento. Por isso, a implementação da Tarifa Zero, para a Rio Ônibus, não é mais uma questão de “se”, mas “quando?”.


Dito isso, o setor empresarial destaca o cuidado que deve-se ter com a questão da mobilidade, com a sua parte financeira e a necessidade de uma discussão séria, que não deve ser usada apenas de modo político.


TECNOLOGIA COMO SOLUÇÃO


Para o professor Matheus Henrique de Souza Oliveira, da COPPE/UFRJ, será necessária a utilização da tecnologia para detectar e monitorar com precisão a quilometragem produzida, o cumprimento de viagens e a acessibilidade dada por essas viagens.


“Tudo isso depende da tecnologia” – afirma o engenheiro de transportes. “É necessária uma metrificação precisa dos custos de transportes, no milímetro (para que o projeto de Tarifa Zero seja efetivado)”, o que envolve olhar para a estrutura de custos e para a estrutura de beneficiados.


A estrutura de custos refere-se às tecnologias de rastreamento e monitoramento precisas e confiáveis para calcular efetivamente o que já foi feito no sistema de transporte público do Rio de Janeiro. Já a estrutura de beneficiados, diz respeito àqueles que se beneficiam do transporte público, para além do usuário.


“Quem se beneficia do transporte público gratuito? É o usuário, mas também é a construtora imobiliária, que tem a sua unidade habitacional valorizada pelo novo sistema de transporte implementado. É o automobilista, que se beneficia com menos tempo de viagem, menos engarrafamento e até mesmo menos acidentes que, porventura, podem acontecer” - ressalta Matheus Henrique.


A Lei de Mobilidade Urbana já cria bases para redirecionar os fluxos de investimentos de grupos que se beneficiam pelo transporte público, com fundos de investimentos em transportes. O que é arrecadado pode se voltar para a melhoria do transporte público e para a aplicação de inovações tecnológicas.


Além disso, o professor da UFRJ acredita que as discussões que nos fizeram chegar até os dias de hoje – em que debatemos a Tarifa Zero – são oriundas de processos políticos dos anos 1990 e também de uma mudança de perspectiva do transporte público após as Jornadas de junho de 2013, movimento conhecido como “Não é por 20 centavos”.


“Antigamente, o processo de reajuste econômico da tarifa era negociado anualmente com os operadores, com fórmulas de cálculos definidas que consideravam o IPCA, o valor do diesel, o aumento de salário e, assim, era reaplicado o reajuste” - afirmou. “Esse formato fluiu bem até o ano de 2013, em que se viu uma nítida mudança no perfil do usuário, principalmente com a inserção de estudantes, e o custo da tarifa começou a ser arcado em termos pessoas” - complementou.


Para Oliveira, “A Tarifa Zero representa uma ruptura com o modelo de que, para funcionar, (o sistema de ônibus) tem que ser viável economicamente somente ao nível do usuário”.


A Tarifa Zero também representaria, segundo ele, um passo na construção de cidades inteligentes, com a gratuidade tornando o transporte público mais sustentável. “Cidades inteligentes são cidades idealizadas como cidades que servem às necessidades do cidadão, com tecnologia embarcada para o usuário e na gestão pública” - afirma o professor.


Diante desse cenário, Matheus Henrique acredita que existem dois caminhos possíveis para a implementação da Tarifa Zero.


“Um caminho é o de discussão ampla sobre quem tem que pagar o transporte público, identificando quem se beneficia do transporte e redirecionando os fluxos financeiros dessas partes para o Fundo de Mobilidade Urbana.” - disse. “Esse é um caminho corajoso, que permite uma cidade Zero Emissões, Zero Tarifa e Zero Acidentes” - alega o especialista.


“O outro caminho é o que o gestor público é o único responsável por implementar a Tarifa Zero. Nesse caminho, um dia a conta vai parar de fechar, os gastos serão enxugados e o transporte público ficará somente para aqueles que não conseguem acessar o transporte individual. As nossas cidades ficariam com várias pessoas sem conseguir se deslocar, ou fazendo isso em más condições, com mais perigo à saúde, mais acidentes e mais engarrafamento” - conclui.



Passageiros do ônibus 693. (Foto: Lourrane Ribeiro/arquivo pessoal)

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